As linhas que constituem este texto narram uma experiência real e humanizadora que experimentei nesses dias. Uma simbiose de sofrimento e alegria, dor e satisfação, morte e ressurreição. Sem querer poetizar a objetividade do fato, para não cair em um sentimentalismo barato e desconexo da realidade, tentarei aproximar-me ao mais próximo possível do fato acontecido. Assim poderei refletir da partir da experiência concreta.
Indo para uma celebração religiosa, dois carros colidiram de forma grave, fazendo com que dois passageiros fossem encaminhados para o hospital em estado de média complexidade. No hospital, após longo tempo de espera, os dois acidentados foram atendidos e clinicados. Um deles, após ter feito exames de rotina e nada de grave constatado foi liberado, enquanto que o outro, por ter quebrado o dedo menor da mão esquerda e por estar com fortes dores nas articulações e, principalmente, na região cervical, ficou em estado de observação.A orientação médica prescreveu que o paciente ficaria internado 24 horas para que a evolução das dores e o restabelecimento do paciente fossem monitorados. Neste contexto, por ter uma relação de amizade com o jovem acidentado e pelas surpresas que a vida nos prepara, acabei recebendo a responsabilidade de ser o acompanhante do paciente e com ele pernoitar no hospital.
Ao chegar, logo que entrei no hospital o encontrei deitado sobre uma maca no corredor, imobilizado e abatido. Imediatamente fui até a enfermeira responsável, e perguntei-lhe por que ainda não o havia levado para um quarto. Respondeu logo que não havia leitos suficientes: bastaria que eu olhasse ao meu redor que encontraria outros pacientes na mesma situação. Ressaltou ainda que tivemos a sorte de encontrar maca disponível, caso contrário, o paciente estaria numa cadeira de rodas. Quando voltei o olhar, vi diversos outros doentes abarrotados nos corredores disputando espaços e no aguardo de leitos: senti uma tristeza profunda, por mim, por meu amigo e por todos os que ali estavam. Por mim, porque me senti incapaz e sem nada poder fazer. Por meu amigo, porque achava que ele necessitava e merecia “algo melhor”e, pelos demais pacientes, por vê-los marcados pela dor, pelo sofrimento e pelo cansaço. Pensei comigo: “isso aqui é uma instituição que cura o corpo e fere a dignidade”. De forma muito educada, a enfermeira colocou uma cadeira de plástico ao lado da maca no corredor, onde eu pudesse passar a noite. Com olhar expressivo, era como se dissesse: “desculpa-me, nada posso fazer”. E nada podia mesmo! Salvo o trabalho dedicado e atencioso que nos prestou durante todo o processo.
Durante o tempo que estive com meu amigo, ajudava-o a se locomover, ir ao banheiro, mudar de posição, tomar as refeições, controlar a medicação e articulava a relação paciente/enfermagem.
Por volta das 22h00 deu entrada no hospital um jovem de 31 anos. Tinha sofrido um acidente de moto, batido a cabeça e estava com fortes dores no corpo. O jovem foi medicado, também colocado sobre uma maca, posta ao lado de onde estávamos eu e meu amigo. Éramos vizinhos em um corredor que abrigava tantos outros.
Tão próximos estávamos que era impossível não perceber a inquietude do jovem. Mexia-se de um lado para o outro. Enrolava as mangueiras por onde pingava o soro e a medicação. Estava completamente inquieto, mexia no celular, fazia ligações, mandava mensagens e não sossegava. Logo percebi que estava sem acompanhante e deduzi que estava comunicando o acontecido a seus familiares. Com o passar das horas, foi-se criando um clima de aproximação e partilha, algo típico de hospitais e filas de espera. Foi neste momento que relatou como acontecera o seu acidente. Como o tempo custa a passar no hospital, nossa conversa se prolongou, falou-me que participava na adolescência de grupos de jovens, era crismado, casado na Igreja e temente a Deus. No segundo momento da conversa, relatou-me que estava distanciado da Igreja, separado da esposa, mas ainda temente a Deus. Com o avançar das horas, já por volta das 02h00 da madrugada, percebi que ele permanecia inquieto. Então tomei a liberdade e perguntei por que o acompanhante dele ainda não tinha chegado. Imediatamente respondeu-me de forma áspera: “quem está doente sou eu, não meu acompanhante”. Ao perceber que não gostou de meu questionamento, silenciei a conversa, levantei da cadeira e fui ver o soro de meu amigo. Após o desconcerto de nossa conversa, muito triste, o jovem me chama e desabafa. Desabafava dizendo que além de ser separado de sua esposa, morava sozinho em uma kitinete, sua mãe e irmão eram falecidos, seu pai morava no interior e as pessoas de seus relacionamentos não teriam essa generosidade de passar uma noite com ele, sentados em uma cadeira de plástico. Com os olhos cheios de lágrimas, dizia que não tinha ninguém. Não havia a quem recorrer. Não tinha quem o acompanhasse.
Foi neste momento que entendi tamanha inquietação e movimentação que se alastrava noite adentro. Novamente meu coração se compadeceu e cheio de tristeza, da mesma forma como quando entrei no hospital e vi os pacientes enfileirados pelos corredores. Sentado entre as duas macas, olhei para ele e disse: “Descanse tranqüilo, durma, eu estou aqui, vou vigiar a sua medicação e ajudar nas refeições. Agora descanse e durma”.
Passado algum tempo, o jovem foi se tranqüilizando, relaxando, até que dormiu. E assumi aquilo que prometi: estar ali. Cuidei do soro, acompanhei cada dosagem, ajudei-o na medicação e fiz tudo o que foi possível. Confesso que não foi fácil dizer para um desconhecido: “eu estou aqui”. Tive que buscar forças para vencer a vergonha e falar algo que não queria fazer. Acho que foi o “eu estou aqui” mais difícil e mais santo da minha vida. Mudei a noite de agonia de uma pessoa que sofria sobre uma maca num corredor de hospital. E não sofria com as dores do acidente, causa de sua internação. Sofria, pois, não tinha alguém ao lado para compartilhar a sua dor. Era uma dor interior, silenciosa. Dor que os medicamentos não alcançavam.
“Eu estou aqui” disse-lhe. E ele confiou! Quando amanheceu, meu amigo, a quem acompanhava oficialmente, ganhou alta, fomos embora e aquele jovem continuou por lá. Ao despedir-nos disse-lhe: “coragem”. Ele respondeu: Muito obrigado!
No carro, voltando para casa, pensei comigo nas forças de minhas palavras; “eu estou aqui”, e o que elas significaram para aquele jovem desconhecido.
Assim são as coisas de Deus. Ele faz uso de nossas fraquezas, de nossa humanidade, para comunicar sua bondade. Acredito que Deus agiu em nós. Em mim, no meu amigo e naquele jovem desconhecido. Deus age sempre quando conseguimos humildemente dizer: “eu estou aqui”. Ele conta com nosso “eu estou aqui”.