Trata-se da casa de Francisco. Após se identificar, o hóspede desce pela
escada semicircular, austera e um pouco fria, que conduz ao hall. Ali, atrás do
enorme balcão, um leigo com traços orientais e traje cor tabaco fica
atendendo. Silêncio absoluto. O verão também é sentido em Santa Marta e, além disso, os hóspedes sabem quem a
qualquer momento pode aparecer no elevador, do outro lado de uma porta, no
refeitório ou numa das salinhas. Quando alguém deixa seu quarto em Santa Marta, precisa estar bem vestido, é claro.
Lá dentro, no hall, há outro guarda
suíço e outro gendarme, ambos vestidos como civis. “Disseram para esperar numa
das salinhas, que tem poltronas estofadas com tecido verde. O Papa – conta nosso interlocutor, recebido em audiência
privada – chegou de repente, sozinho, sem secretários, nem mordomos. Estava com
um envelope com alguns rosários. Ao final do encontro, ele mesmo abriu a porta
e me acompanhou ao pé da escada”. É uma cena que descreve muito melhor do que
outras as mudanças que estão ocorrendo no Vaticano.
A Casa Santa
Marta é algo entre hotel e casa do peregrino, razão pela qual é
muito difícil que nela se instaure o sentido de corte, tão evidente no Palácio Apostólico, com sua dignidade renascentista. A
decisão de permanecer na residência em que se hospedou como cardeal durante o
Conclave (tomada “por razões psiquiátricas”, porque não queria o “isolamento”)
foi explicada por Francisco ao seu amigo e
sacerdote argentino Enrique Martínez,
“Quique”: “As pessoas podem me
ver, levo uma vida normal, como no refeitório com todos...”. E para o café não
há camareiros, mas uma máquina de moedas no corredor.
O seu quarto fica no segundo piso, é o
de número 201. Têm paredes branquíssimas, uma sala com duas pequenas poltronas
e um escritório, um livreiro, tapetes persas, assoalho de cor clara (e muito
lustrado), um espaço para dormir com uma imponente cama de madeira escura e um
banheiro. Esta suíte estava reservada para os hóspedes importantes do Papa, como o patriarca de Constantinopla Bartolomeu I. Quando se
encontraram, o Papa lhe pediu
perdão brincando: “Desculpe-me se roubei seu quarto...”. “Eu a deixo de muito
boa vontade” foi a resposta do Patriarca
ortodoxo.
Nos quartos ao lado do seu vivem dois
secretários: o que Francisco
“herdou” de Ratzinger, o maltês Alfred Xuareb, e o que ele
próprio escolheu, o argentino Fabián Pedacchio.
Figuras que, sem sombra de dúvidas, são menos incômodas e poderosas em relação
aos seus predecessores. Jorge Mario Bergoglio,
ao continuar se considerando como um sacerdote a serviço de Deus (e, portanto,
ao serviço dos demais) não é um monarca; continua sendo o mesmo que era antes
do dia 13 de março, que mudou a sua vida (e que o impediu de usar a passagem de
volta, que já havia comprado para Buenos Aires).
Desta forma, o papa Francisco decidiu continuar vivendo no mesmo lugar,
embora tenha se mudado de quarto, porque durante o Conclave usava um no mesmo
piso, o 207. Decidiu não ocupar o aposento papal: o “Aposento”, assim com
maiúscula, como se conhece no jargão vaticano essa entidade que representa o
mais estreito círculo de colaboradores. Abriu mão de morar nele, mas tomou
posse e, ao fazer isto, ficou impressionado com suas dimensões: “Aqui há lugar
para 300 pessoas!”. Não se trata de uma vila real, mas é possível entender a
reação de alguém que está acostumado a viver (sendo cardeal) em alguns
quartinhos e a arrumar a cama todos os dias.
As primeiras novidades chegaram
durante o Conclave. Assim que foi eleito, e antes de colocar o hábito branco, Francisco foi abraçar o cardeal Angelo Scola, seu “adversário” durante os escrutínios. Em
seguida, veio a rejeição em colocar um dos 45 pares de sapatos vermelhos que
tinham sido preparados para a ocasião; melhor os pretos de sempre. Mais do que
questão de preferência, era uma questão de ortopedia, pois o calçado usado
serve para caminhar melhor. Nada de cruz peitoral de ouro, nada de anel papal
de 18 quilates. Nada de um enorme carro blindado com matrícula “SCV 1”, o almirante de uma frota vaticana que
desempoeirou seus veículos mais sóbrios. Nada de escolta, nem de enormes
manobras de gendarmes para os deslocamentos, inclusive mínimos, dentro do
minúsculo Estado.
O pequeno mundo vaticano, que para dom Marcinkus parecia
“uma aldeia de lavadeiras”, primeiro levantou a sobrancelha, depois tratou de
se adequar, como foi visto dois dias após a sua eleição, quando todos os
cardeais que saudaram o Papa na Sala Clementina carregavam cruzes de ferro e haviam
deixado as cruzes de ouro e pedras preciosas na gaveta.
Em Santa Marta
há dois elevadores e sempre se procura deixar um livre para o inquilino mais
importante. Porém, muitas vezes, Francisco usa o
outro. Dois bispos o encontraram dentro do elevador, justamente antes que as
portas se fechassem. Um pouco envergonhados, foram para o fundo, mas o Papa com um sorriso disse-lhes: “Não mordo”. As anedotas
superabundam. Às vezes, claro, um pouco exageradas, como a do guarda suíço que
fez escala noturna e a quem Francisco teria
levado um sanduíche. Bergoglio se
desloca da Casa Santa Marta a pé. No
sábado, 16 de março, rejeitou com um enfático gesto com as mãos (como se
estivesse dizendo: “estão loucos?”) os carros disponíveis para que percorresse
cerca de 50 metros. Em outra oportunidade, ao sair de sua residência,
encontrou-se com um bispo que estava parado na entrada: “E você, o que faz
aqui?”, perguntou-lhe. “Estou esperando que venham me buscar”, foi a resposta
do prelado. “E não pode ir a pé?”, respondeu-lhe Francisco.
Um Papa
“normal” e, justamente por esta razão, extraordinário. Que repete as palavras
antiquíssimas e sempre novas do Evangelho.
“Palavras surpreendem muito – diz-nos o professor Andrea Riccardi, historiador da Igreja -, porque ressoa de forma especial a autenticidade
de sua pessoa”.
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Andrea
Tornielli
(http://www.ihu.unisinos.br/noticias/521914-a-revolucao-de-francisco-sem-corte-rubi-e-camareiros)
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